a coragem de escrever seu próprio livro
essa semana, ouvi que “aqueles que querem ir para o céu e serem abraçados pelo amor divino devem renunciar ao amor homossexual”.
em tempo: o termo que prefiro usar para descrever o amor entre pessoas do mesmo gênero, é homoafetivo, que foca mais no sentimento e a conexão afetiva e emocional entre pessoas do mesmo sexo, do que à atração sexual.
eu achei que estaria mais preparada para ouvir isso, porque eu sou bem calejada desse tipo de afirmação. talvez me machucaria menos se tivesse vindo de uma pessoa que não me importo, mas veio de uma pessoa que convivo diariamente e que, até o momento, acreditei que celebrava o meu amor.
para ser justa, quem entrou nesse assunto fui eu. estávamos em um papo sobre a religião e o estado, e eu disse que entre os cristãos, existe uma mania de achar que a bíblia deve ser seguida por todo mundo, indiscriminadamente. que para algumas pessoas é somente um livro escrito há mais de 2 mil anos, e que é irônico ser “mais fácil justificar comer carne de porco, do que o amor homoafetivo”.
eu deveria evitar conversar sobre coisas assim, especialmente quando envolve algo tão pessoal quanto a minha sexualidade, porque não é algo que eu possa mudar. sendo assim, qualquer opinião negativa direcionada à minha essência, fere minha existência.
acho que o que mais doeu foi não conseguir seguir a partir daí, porque eu pedi para encerrar o assunto. não tenho obrigação de defender minha sexualidade, mas lidar com a decepção de tentar sair do raso com qualquer pessoa, é responsabilidade minha, sim. assumi o risco. é aquela máxima: como culpar o vento pela desordem se fui eu quem deixei a janela aberta, não é?
o vento desorganizou minhas emoções e eu não me senti articulada o suficiente para uma contrapartida. quando estou inflamada, tenho preferido consentir e pensar com calma em como isso me atingiu, rearranjar meus pensamentos e… escrever.
que bom que me dei esse espaço aqui. folgo em saber que esse espaço não é democrático e que a nada aqui cabe réplica. aqui vale a minha retórica, e quem quiser defender a sua, que crie espaços para isso. minha reflexão sobre esse caso não se propõe a abrir discussões, e sim, responder a mim mesma e tirar do outro o poder de me sugerir o que fazer sob qualquer verdade.
religião é instituição humana
nietzsche fala que o maior inimigo da verdade não é a mentira, mas as convicções. ele entende o poder que as convicções têm sobre a verdade: pouco importa o quão verdadeiras são nossas convicções, se elas estiverem nos impedindo de ver a verdade.
religiões foram criadas para dar um sentido à vida, sendo herança de uma forma primitiva de interpretar o mundo quando não existia o conhecimento científico. os textos sagrados foram escritos por pessoas, com suas próprias ideologias e valores em mente. o que faz um texto ser sagrado, nada mais é, do que ele ser entendido como revelado pelo deus de quem o segue. a bíblia é um texto sagrado para os cristãos, mas o alcorão, é sagrado para os muçulmanos.
em termos objetivos, a bíblia nada mais é do que uma compilação de relatos históricos, poemas, profecias e ensinamentos escritos por diversos autores em épocas diferentes (cerca de 1.700 anos).
o velho testamento é uma coleção de tradições, histórias e crenças, capturando a cultura e os costumes de milênios atrás, de forma particularmente humana. ainda hoje, o livro é usado como referencial de código moral.
eu tento ignorar referências ao velho testamento, porque os próprios cristãos não o seguem, ou só seguem quando conveniente, mas a condenação à prática homossexual me foi apresentada como algo do novo testamento, também.
classificar esse material em versículos, talvez seja a coisa mais sagaz de toda a obra e, possivelmente, o principal motivo de ainda não ter flopado. é tão mais fácil tirar de contexto e isolar passagens para referenciar linhas de pensamento enviesadas, e dessa forma, manipular como a história é contada.

Paulo, que se chamava Saulo e era um soldado romano devasso antes de se converter ao cristianismo, na primeira epístola aos Coríntios, fazia uma referência à indecência do Império Romano sob Nero — o qual, segundo a tradição, o decapitou.
o judeu Saulo, que possuía tripla cidadania (pois era cidadão grego e romano), foi um espião infiltrado com a missão de dividir os que acreditavam no novo messias. no caminho de perseguição aos cristãos, promovendo matanças em suas cidade, ateando fogo em casas e colocando em presídios homens e mulheres por causa da sua fé, se arrependeu da vida que levava, mudou de nome e emergiu metamorfoseado num celibata de nome Paulo.
a bíblia que relata o apóstolo Paulo como o grande divulgador do cristianismo esconde que Saulo, além de X9, como convicto soldado romano, frequentava os bacanais para praticar sodomismo.
a sociedade romana era patriarcal, e o cidadão homem nascido livre possuía liberdade política e o direito de governar a si mesmo e a sua casa. a mentalidade de conquista e o "culto à virilidade" moldaram as relações entre pessoas do mesmo sexo.
embora na época de Saulo, a homossexualidade fosse tolerada, como o convertido cristão Paulo, ele interpretou de forma rigorosa a proibição de Levítico: “não te deitarás com um homem, como se fosse mulher; pois isso é uma abominação”.
vale o destaque contextual: para os cristãos, a mulher é a origem de todos os pecados e um desafio à sexualidade masculina. “se deitar como uma mulher” é muito mais uma referência à submissão e inferioridade feminina do que relacionada ao prazer anal.
o renascido Paulo, que se considerava um pecador sem perdão, cometedor de um pecado muito além de qualquer redenção, deu início à histeria cristã que transformou o sexo numa coisa nojenta, impura e pecaminosa.
colocando de lado a quantidade de contradições que só o acaso da história pode proporcionar, é razoável dizer que existem universos fictícios de fantasia menos incongruentes do que o velho testamento. dito isso, eu me reservo aqui o direito de fazer uma provocação.
a psicanálise classifica a homossexualidade em dois termos: pode ser egosintônica, ou seja, bem aceita, e egodistônica, quando a pessoa tem sentimentos homossexuais, mas não aceita ter relacionamentos com indivíduos do mesmo sexo.
quando acompanhamos o arco de desenvolvimento de qualquer personagem bem construído, é importante levarmos em conta o seu histórico de redenção, que nesse caso, não existe. as notas do próprio apóstolo Paulo, em suas epístolas, sugerem uma súbita conversão: as mãos que matavam, do absoluto nada, passaram a curar, levar alívio às almas perdidas e sem rumo.
o ponto chave da vida de Saulo, que levou o evangelho com o mesmo fervor que com que levava o judaísmo, estava na sua obediência… e rende uma bela história de “entre no meu coração e faça as mudanças que forem necessárias”.
provoco: as pessoas defendem o monte de palavras que Paulo escreveu de forma tão enfática, e que falam que essa é a palavra de deus, levam em consideração o histórico de Saulo, que foi de carrasco, destruidor de vidas e sonhos a um homem escolhido? as palavras fervorosas de autoaceitação do celibatário Paulo, pós-cristianismo, que nada escreveu além do que o seu ponto de vista sobre determinados temas, não pode ser de quem não se conforma com a prática homossexual do passado, ou não percebe o sentimento como sendo parte de si mesmo? como uma forma de negar tudo aquilo que um dia foi, pós-conversão.
isso sem contar a quantidade de traduções que essa palavra (dos homens) já teve. na passagem citada a mim, Paulo diz: “não erreis: nem os impuros, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem malakoi, nem arsenokoitai herdarão o reino de deus”. os crentes traduzem essas palavras gregas como “afeminados e homossexuais” mas traduções mais recentes preferem “pervertidos” ou “imorais”.
ainda assim, o contexto histórico é importante para entender qualquer material religioso. o que foi dito em um texto milenar pode ter sido relevante naquele momento, mas pode ser desatualizado e, às vezes, ofensivo para pessoas em contextos diferentes.
já que é para falar de deus
eu imagino que a ideia de uma entidade onipresente, onipotente e onisciente seja confortante para as pessoas, mas ainda assim pode trazer perguntas difíceis.
como criador de tudo, que pode fazer o que quiser e que toda a crueldade no mundo é apenas uma forma de nos testar ou de "impedir a arrogância humana", para mim, além de uma perspectiva humano-centrista demais, faz parecer a ideia de um "plano divino" arbitrária e cruel.
o deus que eu acredito, e eu não imponho isso a ninguém, é uma força, uma energia, que se manifesta, também, no amor. e o amor é uma das maiores e mais poderosas energias que existem, algo que podemos experimentar e compartilhar. o deus que eu acredito não condena o amor, não me faz renunciar um amor para, assim, me amar.
no momento em que já tinha desistido da vida, deus apresentou esse amor homoafetivo para mim. foi esse amor que me resgatou, que me fez recuperar a vontade de viver e ser feliz. essa experiência de deus salvou minha vida. o amor foi um presente que aceitei e que me fez ficar nesse mundo. foi feito por ele e a mim foi concedido. eu aceito o presente do amor, porque ele teve o poder de transformar, iluminar e catalisar minha jornada por uma vida autêntica.
sei que o amor que sinto é lindo, puro, genuíno e isso é uma força poderosa e sagrada dentro de mim, e tenho total direito de colocar minha fé nele. nenhum livro é capaz de me convencer do contrário.
essencialmente, tenho pensado a ideia de deus como a autoestima. me encontro com ele em um sentimento, uma emoção, uma força interior que me ajuda a lidar com o mundo no meu coração e na minha mente. mas esse é um papo para outro post.
o julgamento religioso
colocar o amor entre pessoas adultas do mesmo gênero na mesma bandeja que ladrões, avarentos, caluniadores e trapaceiros é uma comparação totalmente desproporcional e injusta.
a crueldade velada que pode vir de "aceitar o amor de deus" é dolorosa. eu não quero à minha volta pessoas que pensam que o meu amor é imoral. eu não sou obrigada a abrir meu coração para pessoas que não estão dispostas a me compreender, pessoas que se colocam num pedestal moral, como se o deus que elas, com selo de verificado, condenasse todas as formas de amor fora de suas visões limitadas.
cada vez mais certa que não dá para confiar em pessoas religiosas, por mais sensatas que pareçam. podem até me celebrar na frente de outras, mas no fundo julgam e se acham moralmente superiores. tenho direito de achar o contrário, pela falta de coragem de escreverem sua história e serem alguém além do que já foi escrito num livro.
às vezes eu acho que essas pessoas vivem um amor platônico com deus. é comum ver pessoas apaixonadas pela ideia de deus e totalmente empenhadas nela, até o ponto em que a forma de deus na cabeça dessa pessoa é mais importante do que tudo.
deus não precisa de religião, a religião é que precisa de deus
deus não é cristão, deus não tem religião e não é propriedade privada. qualquer cultura ou pessoa tem o direito de procurar deus à sua maneira. a busca pela divindade, espiritualidade e religião são questões pessoais que não deveriam se limitar às leis ou convenções de um sistema religioso específico.
com tudo isso, essa pessoa me provoca o inverso objetivo dela. agora entendi que admirar a história de jesus cristo não necessariamente quer dizer que eu me identifico com a religião que cresce desgovernadamente em seu nome. no fim, entender como um sistema de crenças não se alinha com minhas experiências, valores ou identidade, foi um passo significativo.
eu não vou deixar a religião dela me afastar de deus, ou fazer pensar que deus não abençoa o meu amor. parte do encanto do conceito de deus é que ele é infinitamente pessoal, abstrato e atemporal.
precisei dessa amostra do amor cristão para encontrar a definição de que ele não me é suficiente.